NHANDEREKOA: "ONDE A CULTURA VIVE"

cartografias da resistência e da reparação territorial Guarani em São Paulo

Após um ciclo de mobilizações históricas que tomaram São Paulo – Terra Indígena – entre 2013 e 2025, a TI Jaraguá foi finalmente reconhecida como território de posse ancestral Guarani.
Elaborada em colaboração com xeramõi e xejaryi, xondaros e xondarias, professores, lideranças e ativistas Guarani, esta plataforma apresenta uma cartografia da atual configuração da TI Jaraguá no momento de sua demarcação física, em setembro de 2025.
Combinando análise de dados geoespaciais, cartografias participativas, entrevistas e documentação de arquivo, traça um panorama histórico das práticas espaciais das comunidades Guarani para a defesa, o cuidado, e a reparação das florestas do Jaraguá.

A Terra Indígena Guarani do Jaraguá preserva os últimos fragmentos de Mata Atlântica na cidade de São Paulo, um dos biomas brasileiros mais devastados desde a colonização europeia. 

Além de ser uma reserva florestal de fundamental importância ambiental e climática para a metrópole paulista, onde áreas verdes são notoriamente escassas, o Jaraguá é um território de imenso valor espiritual e cultural para as comunidades indígenas que aí vivem desde tempos imemoriais. 

Ka’aguy – a mata, a floresta – é uma paisagem saturada de história e memória, o patrimônio vivo dos ancestrais (humanos e não-humanos) dos povos Guarani.

Pico do Jaraguá em São Paulo, Terra Indígena Guarani
Os xeramoi sempre dizem que os elementos da cultura guarani estão inseridos justamente no ka’aguy, “a mata”, “a floresta”. Para nós ka’aguy é como se fosse o nosso irmão mais velho, por que a floresta faz com que o nosso modo de vida seja feita do jeito certo, porque todos os ensinamentos estão lá. – Jurandir Tupã Jekupe Mirim

TERRA INDÍGENA JARAGUÁ

A Terra Indígena Jaraguá é um território localizado na cidade de São Paulo, tradicionalmente habitado pelo povo Guarani Mbya. A área reconhecida e demarcada pelo Estado Brasileiro abrange 532 hectares, a maior parte ainda cobertos de Mata Atlântica. Atualmente, a TI Jaraguá conta com nove Tekoas (aldeias).

TEKOA YTU

Retomada e fundação: década de 1960

Uma das mais antigas tekoas, a tekoa Ytu, “Aldeia da Cachoeira”, foi fundada pela família de Joaquim Augusto Martim e Jandira Augusto Martim, primeira Cacica da Terra Indígena Jaraguá. O nome se refere ao Ribeirão das Lavras que chega à _Tekoa _por meio de uma pequena cachoeira. Cobrindo um perímetro de certa de 1.8 hectares, foi demarcada em 1987.

TEKOA PYAU

Retomada e fundação: década de 1990.

A tekoa Pyau, traduzido como “aldeia nova”, é a segunda aldeia do processo histórico de retomada da T.I. Jaraguá. Hoje é a comunidade com maior densidade populacional da terra indígena. A tekoa está cercada pela Rodovia dos Bandeirantes e pela Rua Comendador de Matos, infraestruturas que bloqueiam sua continuidade territorial e afetaram historicamente áreas de coleta, caça e cultivo.

O mestre dos saberes Natalício Karaí em frente do seu jardim medicinal na Tekoa Pyau
TEKOA ITAKUPE

Retomada e fundação: 2005

Situada no extremo norte da T.I. Jaraguá, a área onde está a Tekoa Itakupe é utilizada pelas comunidades Guarani desde as primeiras retomadas nos anos 1950 e 1960. Fundada em 2014, hoje é formada por três núcleos: Sol nascente, Toka da Onça e (confirmar como querem chamar o terceiro núcleo). Por estar localizada do outro lado do Pico do Jaraguá, próxima de suas formações rochosas, foi nomeada de Itakupe, que pode ser traduzido como “atrás da pedra”.

TEKOA ITAWERA

Retomada e fundação: 2014

Fundada pela Cacica Ara Poty (Maria) em 2014, a Tekoa Itawera recuperou uma área antes destinada ao descarte de lixo. Hoje, a comunidade se dedica à recuperação ambiental e cultural, com ações como o reflorestamento com espécies nativas, o cultivo de alimentos tradicionais como o milho Guarani, bem como um vasto trabalho de artesanato. O nome da aldeia pode ser traduzido como “pedra reluzente”.

A cacica Maria Ara Poty confeccionando artesanato em sua casa na Tekoa Itawera, recuperada de um grande depósito de lixo
TEKOA ITAENDY

Retomada e fundação: 2017

Desde sua retomada em 2017, a Tekoa Itaendy, “aldeia da pedra amarela”, vem promovendo práticas de manutenção da biodiversidade como o reflorestamento com espécies nativas, plantio de roças com alimentos tradicionais, bem como a reintrodução e criação de espécies de abelhas nativas.

TEKOA YVY PORÃ

Retomada e fundação: década de 2018.

Assim como Itawera, Yvy Porã se estabeleceu em uma área antigamente destinada ao descarte de lixo urbano, situada no pé das matas do Pico do Jaraguá. Ao longo dos anos, a tekoa tornou-se importante referência de práticas ecológicas de des-poluição, recuperação e manutenção da Mata Atlântica. Yvy Porã, traduzido como “terra boa” ou “terra bela”, também é uma referência de práticas de recuperação de diversas espécies nativas de abelhas, como a jate’i (jatai), considerada sagrada.

Márcio Werã Mirim, responsável por cuidar do enorme meliponário da Tekoa Yvy Porã
TEKOA PINDÓ MIRIM

Retomada e fundação: 2023

Uma das tekoas mais recentes da T.I. Jaraguá, Pindó Mirim foi retomada em 2023. Situada no extremo noroeste da área demarcada, a comunidade vem desenvolvendo um forte trabalho de reparação ambiental, com foco na regeneração das áreas de Mata Atlântica afetadas pela construção do Rodoanel e plantações de eucaliptos. Destaca-se o reflorestamento com mais de 1500 mudas de árvores nativas e 300 mudas de árvores frutíferas.

Daniel Werã Mirim mostrando os remanescentes de plantações de eucalipito na Tekoa Pindó Mirim
TEKOA MIRIM

Retomada e fundação: 2023

Tekoa Mirim, chamada “pequena aldeia”, está localizada ao lado da Tekoa Pyau. Assim como outros núcleos habitacionais, seus moradores têm desenvolvido várias práticas de cuidado e reparação do território. Destaca-se o plantio de mudas nativas, frutíferas e hortaliças ao longo do caminho que beira a Rodovia dos Bandeirantes, conectando a Tekoa Pyau à Tekoa Mirim e à Ka’aguy Mirim.

Marcio SOBRENOME e seu grande roçado em frente a Rodovia dos Bandeirantes na nova aldeia Tekoa Mirim
TEKOA KA'AGUY MIRIM

Retomada e fundação: 2024

A Tekoa Ka’aguy Mirim é outra retomada adjacente à Tekoa Pyau. Com o nome de “pequena floresta”, situa-se no limite da Terra Indígena, entre a Rodovia dos Bandeirantes e a Rua Antônio Cardoso Nogueira. A aldeia é considerada por seus moradores como um importante ponto de cuidado de espécies nativas medicinais presentes neste local, motivo que impulsionou a retomada da área.

trecho da entrevista com Jurandir Tupã Jekupe Mirim sobre o significado da Ka'aguy (floresta) para a cultura Guarani

Nhanderekoa – “o lugar onde vivemos”, “o lugar onde o nosso modo de vida acontece”, “onde nossa cultura vive” – é o título atribuído à estas cartografias e mapeamentos.

Nhanderekoa expressa como o território do Jaraguá e seus animais, plantas e espíritos são parte integrante da forma como os Guarani entendem seus modos de habitar e viver, tendo a floresta como extensão de uma moradia compartilhada entre seres humanos e não-humanos em redes de cuidado e reciprocidade.

Por décadas, as comunidades Guarani vêm resistindo e lutando pelo reconhecimento de suas terras ancestrais e pela preservação de suas florestas sagradas no Jaraguá.

naTekoa Yvy Porã, as casas se misturam com a floresta, formando parte do mesmo sistema ecológico
A mata para nós tem uma inteligência, tudo funciona de uma forma que uma liga a outra, os animais são importante pro ka'aguy e para nós, as árvores, as ervas ... tudo tem uma conexão. Para nós não é simplesmente a mata. É o nosso irmão, é um membro do nosso povo. Como se fossem espíritos conectados, um depende do outro. Jurandir Tupã Jekupe Mirim
parte II

Da Invasão ao Parque: a colonização do Jaraguá

(1554 – 1960)

Conforme mostra o Mapa Etno-Histórico elaborado pelo etnólogo Curt Nimuendajú (1944), o território ancestral Guarani se estende desde a fronteira do estado do Paraná com o Paraguai, a Argentina e a Bolívia, até o estado do Espírito Santo, passando por Mato Grosso do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro. Também existem terras Guarani nos estados de Tocantins e Pará.  Os ancestrais Guarani caminhavam, e os Guarani de hoje seguem caminhando, por todo o território, que chamam de Yvyrupa, “o leito da terra”, nas palavras do professor Jurandir Tupã Jekupe Mirim.

Recorte do Mapa Etno-Histórico de Curt Nimuendajú (1944), mostrando a amplitude do território Guarani (Fonte: Bibloteca Digital Curt Nimuendaju)

Com a invasão Europeia, assim como aconteceu em outros territórios indígenas, os territórios Guarani foram brutalmente reconfigurados por deslocamentos forçados e extermínios. 

Em São Paulo, após a criação do aldeamento do Pateo do Collegio em 1554, as populações tupi-guarani que habitavam a região foram submetidas a sistemáticas políticas de confinamento e escravização.  

Marco fundante da cidade, o Pateo do Collegio irradiou a colonização sobre o Jaraguá, uma das primeiras regiões onde os europeus exploraram ouro no Brasil Colônia. O Jaraguá passa então a ser alvo da exploração de bandeirantes, e assim é continuamente despovoado de seus habitantes nativos.

Yvyrupa seria “território”. Mas o território, para muitas pessoas, é somente a terra, o espaço. Para nós o território vai além. Ele nos lembra o leito, o leito do nosso corpo, o leito do nosso modo de viver – Jurandir Tupã Jekupe Mirim.
Gravura retratando a extração de ouro no Jaraguá, circa século XVIII. Fonte: John Mawe, Travels in the interior of Brazil, 1812

Em 1554 funda-se o povoado de São Paulo dos Campos de Piratininga, futura cidade de São Paulo, onde hoje encontra-se o Pateo do Collegio.

Pintura do Pateo do Collegio, por Jean-Baptiste Debret, quando o edifício servia como Palácio do Governo de São Paulo em 1827

Em 1560, ao sul do Pico do Jaraguá, na região de Barueri, José de Anchieta mandou erguer outro aldeamento para concentração e catequização dos indígenas.

Capela de Nossa Senhora da Escada, ponto central do Aldeamento de Barueri. As ruínas da capela original, datada do século XVI, foram encontradas em 2003 e logo restauradas.

Pouco depois, em 1597, o bandeirante Afonso Sardinha encontra ouro na região do Jaraguá. Estabelece uma grande propriedade na área com a construção de um complexo Casa Grande – Senzala ao pé do morro.

O complexo Casa Grande-Senzala construído por Afonso Sardinha é hoje o principal patrimônio do Parque Estadual do Jaraguá.

Com a exaustão do ouro em São Paulo e a descoberta das minas em Goiás e Minas Gerais, a área do Pico do Jaraguá transforma-se numa enorme propriedade agrícola. Durante o século XIX, seguindo a expansão da economia cafeeira paulista, a chamada “Fazenda Jaraguá” torna-se uma grande produtora de café, e vastas áreas de Mata Atlântica são arrasadas.

Espécies de café remanescentes destas plantações são encontradas até hoje por toda a Terra Indígena Jaraguá.

A CRIAÇÃO DO PARQUE DO JARAGUÁ

Na década de 1940, com o declínio da atividade cafeeira, a Fazenda Jaraguá é adquirida pelo município de São Paulo e torna-se propriedade estatal. Em 1946, a propriedade passa a ser administrada pelo Serviço Florestal do município.  

Por esta época, na primeira metade do século XX, o Jaraguá continuava sendo um lugar habitado pelos Guarani através dos caminhos que conectavam o Paraná e o Mato Grosso do Sul até o Vale do Ribeira e o litoral paulista.

Em 1961, no contexto do estabelecimento das primeiras reservas florestais nacionais, cria-se o Parque Estadual do Jaraguá, que pela primeira vez garante algum nível de proteção ambiental aos remanescentes de Mata Atlântica no Pico do Jaraguá.

Mapa dos limites do Parque Estadual do Jaraguá apresentado no Processo de Tombamento do CONDEPHAAT de 1978. A área hachurada em amarelo ao lado direito, destinada à criação do complexo turístico do parque, coincide com a área da Tekoa Ytu, estabelecida entre três lagoas ao pé do morro. (Fonte: CONDEPHAAT)

Ao proteger as florestas do Jaraguá dentro dos parâmetros ambientalistas tradicionais, o Parque Estadual acabou não apenas cerceando o uso das matas pelas comunidades Guarani, mas também foi um modo de apagar a presença indígena da região, definindo a área como uma grande reserva ecológica homogênea, vazia e inabitada .   

Em paralelo, São Paulo vive um rápido processo de urbanização. Entre 1940 e 1948 é construída a rodovia Anhanguera nas margens do Território Guarani do Jaraguá, e em 1955 é construído o linhão de transmissão Anhangabaú-Jundiaí sobre o pico do morro. Estas grandes infraestruturas de transporte e energia inter-urbanas abrem caminho para a voraz especulação imobiliária que se daria nas décadas seguintes, principalmente com o regime militar depois do golpe de 1964.

O professor Jurandir Tupã Jekupe Mirim mostra uma planta de café nas florestas da TI Jaraguá, remanescente das plantações do século e XIX, quando a região funcionava como uma grande propriedade agrícola.
Planta da Via Anhanguera, década de 40 (Arquivo Biblioteca do Departamento de Estradas e Rodagens)
parte III

A Retomada do Jaraguá

(1800 - 1961)

No arco do século XIX ao início do século XX, ocorrem grandes migrações Guarani da região fronteiriça do Paraná e do Mato Grosso do Sul para o estado de São Paulo.

Como identificado por Curt Nimuendajú, nos anos 1810, 1820 e 1870, e possivelmente em outros períodos do século XIX, registram-se migrações de grupos Guarani vindos da região do Iguatemi, na fronteira entre o Paraná e o Mato Grosso. Em 1910, sabe-se da migração de outro grande grupo Guarani vindo da região fronteiriça Brasil-Paraguai-Argentina para a região de Itariri no Vale do Ribeira, atual Terra Indígena Itariri. Entre 1923 e 1946 registram-se sucessivas migrações de grupos Guarani vindos do sul do Brasil para o estado de São Paulo, assentando-se principalmente no litoral (fonte).

Estes últimos grupos formam a geração imediatamente anterior de vários moradores das T.I.s Jaraguá e Tenondé Porã na cidade de São Paulo. Entre eles está a cacica Jandira, fundadora da Tekoa Ytu no início dos anos 1960, primeira tekoa da retomada do Jaraguá. 

Após a criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em 1910, os povos Guarani são alvo de uma política sistemática de aldeamentos. No estado de São Paulo, o SPI busca concentrar as famílias Guarani no Posto Indígena do Bananal em Itanhaém, no litoral, e no Posto Indígena de Araribá, no interior, despovoando a cidade de São Paulo da presença Guarani.  

Com sua resistência ancestral, fugindo dos aldeamentos, algumas famílias iniciam retomadas na cidade de São Paulo no Jaraguá e na região de Parelheiros, atuais Terra Indígena Jaraguá e Terra Indígena Tenondé Porã.

Imagem histórica do “aldeamentos” Guarani do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) na região do Rio Itariri, no Vale do Ribeira (Imagem do acervo particular de João Emílio Gerodetti).
Análise de imagem aerofotogramétrica de 1954, onde é possível identificar a área onde foi estabelecida a Tekoa Ytu, próxima de fontes de água ao pé do morro do Jaraguá. Alterações na estrutura da mata indicam a possível presença de assentamentos Guarani na região anteriores a 1960-1961, quando a Tekoa Ytu, considerada a primeira retomada do Jaraguá, é estabelecida definitivamente.

Nos anos 1950, expulso pelo SPI do aldeamento de Bananal, a família de André Samuel dos Santos –  liderança Tupi-Guarani perseguida pelo Estado como “rebelde”, conforme atestam documentos do SPI – inicia a retomada das florestas do Jaraguá. Entre 1960 e 1961, o casal de caciques Jandira e Joaquim migra do litoral para o Jaraguá, onde erguem uma tekoa ao lado de uma fonte de água ao pé do morro. 

A retomada recebe o nome de Tekoa Ytu, “aldeia da cachoeira”. Desde então, as florestas do Jaraguá passam a ser um grande refúgio, abrigando famílias Guarani vindas de várias regiões do Brasil.

Entrevista histórica com a Cacica Jandira, matriarca da Terra Indígena Jaraguá em São Paulo (realizado em 1992 pelo VideoFAU da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP).
parte IV

Ditadura, Deslocamentos Forçados & Desmatamento

(1964 – 1984)

Seguindo a lógica desenvolvimentista dos anos 1960 e 1970, o período da ditadura militar é marcado por investimentos em mega infraestruturas e pelo planejamento autoritário. 

Na cidade de São Paulo, realizam-se grandes obras urbanas e rodoviárias, como a Rodovia dos Bandeirantes, que atinge diretamente o território ancestral Guarani do Jaraguá. O Pico do Jaraguá é designado para receber torres de antenas de comunicação, e são concedidas terras para o Grupo Bandeirantes, a TV Globo, a Fundação Padre Anchieta (TV Cultura) e o Exército. Em 1972 é construído um grande complexo turístico no parque.

Na esteira destas obras, a especulação imobiliária e a urbanização expandem-se vertiginosamente nas margens de São Paulo, avançando sobre as florestas do Jaraguá. As décadas entre 1960 e 1980 registram altos índices de desmatamento na franja da zona norte da cidade, com o adensamento de bairros como Jaraguá e Pirituba.

construção Obras da construção da Rodovia dos Bandeirantes na região do Pico do Jaraguá ( Fonte: Arquivo FGV CPDOC) Rodovia dos Bandeirantes na região do Pico do Jaraguá (Fonte: CPDOC FGV)

Ao passo que os “grandes empreendimentos” da ditadura militar avançavam Brasil afora, os povos indígenas eram reprimidos pelo regime e seus direitos sistematicamente violados.

Como mostra o relatório da Comissão Nacional da Verdade, no contexto dos planos de desenvolvimento nacional, inúmeras comunidades indígenas foram submetidas a transferências e remoções forçadas executadas por agentes de estado para abrir terras para obras de infraestrutura.

É o caso da construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu no centro do território ancestral Guarani no Oeste do Paraná. O imenso lago artificial de Itaipu inundou dezenas de tekoas, e várias famílias Guarani foram forçadas a deixar suas terras, algumas migrando para São Paulo. 

Ao mesmo tempo, lideranças indígenas eram perseguidas pelo Estado por seu ativismo político pela defesa dos territórios, ou tornavam-se alvo de milícias ruralistas, como no caso do grande líder guarani-ñadeva Marçal de Souza. Um dos precursores das lutas guarani pela recuperação e reconhecimento de seus territórios ancestrais, Marçal de Souza, Tupã-Y, foi assassinado por pistoleiros no Mato Grosso do Sul em novembro de 1983.

Entrevista histórica com Marçal de Souza, liderança Guarani assassinada em 1983.
Inauguração da Rodovia dos Bandeirantes com a presença do ditador General Ernesto Geisel (Arquivo FGV CPDOC)
Mapa das tekoas inundadas e forçosamente removidas da região do lago artificial de Itaipu (Fonte: agência autônoma e CGY)
parte V

Retorno à Democracia & Demarcação da Tekoa Ytu

(1984 – 1989)

A resistência dos povos indígenas desempenhou um papel protagonista na derrocada do regime militar e no retorno à democracia nos anos 1980.

Sob pressão do movimento indígena, a Constituição de 1988 reconhece o direito dos povos originários a seus territórios ancestrais, sendo esses direitos anteriores à própria criação do Estado brasileiro. A Constituição também garante a proteção da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas.

Neste contexto, assim como outros territórios e movimentos populares, o Jaraguá passa por um processo de crescente organização política e reclame de direitos.

Pressionada pelo movimento indígena, em 1984 – ano do movimento “Diretas Já” – a FUNAI procede com regularização de algumas terras indígenas no Estado de São Paulo, incluindo uma pequena parte da Terra Indígena Jaraguá correspondente à Tekoa Ytu, demarcada em 1987. 

Ainda que representassem avanços democráticos, estas demarcações eram claramente insuficientes, especialmente no caso da TI Jaraguá, onde a área demarcada abrangia apenas o perímetro de 1.8 hectares do núcleo habitacional da Tekoa Ytu. Deste modo, a demarcação ignorava a extensão territorial do uso tradicional das matas que mantém o nhandereko, o modo de habitar Guarani.

Mapa assinalando a área demarcada em 1987, circunscrita ao núcleo habitacional da Tekoa Ytu, em comparação com a área reconhecida da T.I.Jaraguá atualmente.
À frente na bancada, da esquerda para a direita: Teseya Panará, Kanhõc Kayapó, Raoni Mētyktire e Tutu Pombo Kayapó, dentre outros, ocupam auditório da liderança do PMDB nas negociações do capítulo dos indígenas na Constituinte em 1988 (Fonte: Beto Ricardo/ISA) Fonte: Beto Ricardo [Instituto Socioambiental]
Selo da Reserva da Biosfera - UNESCO

Em paralelo, no arco entre os assassinatos de Marçal de Souza e Chico Mendes em 1983-1984, e a realização do encontro internacional ECO-92 promovido pelas Nações Unidas no Rio de Janeiro em 1992, a pauta ambiental consolida-se internacionalmente e no Brasil. 

Em 1994 o Parque Estadual do Jaraguá é reconhecido pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade, na categoria de Reserva da Biosfera, passando a integrar o Cinturão Verde da Cidade de São Paulo.

 Assim como na criação do Parque Estadual em 1961, tais medidas protetivas ambientalistas muitas vezes entram em conflito com o direito das comunidades Guarani ao seu território ancestral, impedindo-as de usufruir dos recursos naturais das florestas dentro do perímetro do Parque, que hoje encontra-se totalmente cercado.

Mapa da área norte do Cinturão Verde da Cidade de São Paulo. As florestas da T.I. Jaraguá são as mais preservadas do cinturão.
parte VI

Reconhecimento, Luta & Demarcação

(1990 – 2025)

Com a volta da democracia após vinte anos de ditadura militar, as comunidades Guarani passam a expandir as retomadas no Jaraguá. Na década de 1990, as lideranças Karaí Poty (José Fernandes) e Eunice, filha da cacica Jandira, fundam a Tekoa Pyau, chamada “aldeia nova”. Nas décadas seguintes ocorrem várias retomadas: em 2005, a Tekoa Itakupe; entre 2016-2017, a Tekoa Itaendy; em 2018, a Tekoa Yvy Porã; e em 2023, as tekoas Pindó Mirim, Mirim, e Ka’aguy Mirim. 

Estas retomadas acontecem em um contexto de crescente organização política dos povos Guarani a nível nacional. Em 2006 é criada a Comissão Guarany Yvurupa (CGY), organização que congrega coletivos dos povos Guarani nas regiões Sul e Sudeste do Brasil na luta pela terra. 

A Terra Indígena Jaraguá cresce forte e fica cada vez mais populosa. Através da CGY e de suas bases, as lideranças Guarani pressionam pela demarcação de seus territórios.

"Rodovia Rojoko - O dia em que fechamos a Bandeirantes”. Video realizado pela CGY documentando o fechamento da Rodovia dos Bandeirantes por ativistas Guarani em 26 de Setembro de 2013. O protesto pede a demarcação das T.I.s Jaraguá e Tenondé Porã, e o cancelamento da Proposta de Emenda a Constituição 215/2000, que visava transferir do Poder Executivo para o Congresso Nacional a competência para a demarcação de terras indígenas e quilombolas, ativistas Guarani bloqueiam a Rodovia dos Bandeirantes. (Fonte: CGY)
Estando à frente tanto de uma manifestação simbólica ou de um enfrentamento, a gente vê que a nossa luta é diferente. A gente não tem somente uma luta de rua, mas também uma luta espiritual Antony Karaí Poty
Protesto no Monumento às Bandeiras (Fonte: Tiago Moreira dos Santos - ISA)

Em 2013, a FUNAI finalmente realiza o estudo de demarcação da T.I. Jaraguá – o chamado “Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação” ou “RCID” – que identifica uma área de uso tradicional de 532 hectares. 

Dois anos depois, em 2015, sob pressão dos grandes protestos realizados por ativistas Guarani em São Paulo, o governo de Dilma Rousseff (Portaria 581) reconhece a posse indígena permanente do Jaraguá, um momento histórico celebrado por toda Yvyrupa.

Em protesto contra a anulação da demarcação da Terra Indígena Jaraguá, entre os dias 14 e 16 de setembro de 2017, ativistas Guarani ocupam o Pico do Jaraguá e desativam as torres transmissoras, cortando o sinal de telefonia e televisão para uma vasta região da cidade de São Paulo (Fonte: Comissão Guarani Yvyrupa - CGY)

Mas a justiça ao reconhecimento da posse ancestral Guarani do Jaraguá teve vida curta. Eventos políticos em Brasília trazem uma reviravolta ao processo. 

Em 2017, após o impeachment de Dilma Rousseff, o governo de Michel Temer anula a demarcação da Terra Indígena Jaraguá (Portaria 683). Ato contínuo, durante o governo de Jair Bolsonaro entre 2019 e 2022, o projeto da chamada “Lei do Marco Temporal”, que havia sido praticamente arquivado em 2018, volta a ser pauta no Congresso Nacional. 

Em maio de 2023 a Câmara dos Deputados aprova a “Lei do Marco Temporal”. Cinco meses depois, em setembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal rejeita a tese como inconstitucional. Entretanto, a proposta segue em pauta no Congresso Nacional até os dias de hoje, ameaçando a integridade dos territórios indígenas.

Luta & Diálogo: entrevista com Antony Karaí Poty sobre o papel da luta de rua e espiritual dos Guarani

Em resposta a estas violações de seus direitos consagrados com a Constituição de 1988, entre 2013 e 2025, as comunidades Guarani do Jaraguá, junto com as comunidades de Tenondé Porã, realizam uma série de atos políticos e ações de advocacia, literalmente reocupando a cidade de São Paulo – Terra Indígena – durante uma década de sucessivas manifestações de grande amplitude política e cultural para a cidade e para todo o país.

26 de setembro de 2013: Em protesto contra a Proposta de Emenda a Constituição 215/2000, que visava transferir do Poder Executivo para o Congresso Nacional a competência para a demarcação de terras indígenas e quilombolas, ativistas Guarani bloqueiam a Rodovia dos Bandeirantes. O protesto também pede a demarcação das T.I.s Jaraguá e Tenondé Porã

Bloqueio da Rodovia dos Bandeirantes. Fonte: Comissão Guarani Yvyrupa [CGY]

01 de outubro de 2013: Em uma caminhada da Avenida Paulista até o Monumento às Bandeiras, ativistas Guarani realizam “Ato de Defesa dos Direitos Indígenas e da Constituição Federal” contra a PEC 215

Protesto no Monumento às Bandeiras. Fonte: Tiago Moreira dos Santos [ISA]

16 de abril de 2014: lançamento da campanha “Resistencia Guarani SP” com ato no Pateo do Colégio e ocupação do Museu Anchieta

Lançamento da campanha “Resistência Guarani SP” com ato no Pateo do Colégio e ocupação do Museu Anchieta. Fonte: Mídia Ninja

24 de abril de 2014: protesto partindo do MASP até a praça Roosevelt, exigindo a demarcação das T.I.s Jaraguá e Tenondé Porãa

Protesto pedindo a demarcação da Terra Indígena Jaraguá e da Terra Indígena Tenondé Porã. Fonte: Eduardo Anizelli/Folhapress

06 de junho de 2014: protesto na Assembleia Legislativa de São Paulo e no Monumento às Bandeiras pelo arquivamento da PEC 215 e pela demarcação das T.I.s Jaraguá e Tenondé Porã

Protesto contra a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215. Beatriz Macruz/Repórter Brasil

05 de maio de 2016: ativistas Guarani ocupam a sede da Secretaria da Presidência da República em São Paulo, na Avenida Paulista, em protesto pela demarcação das T.I.s Jaraguá e Tenondé Porã

Protesto exigindo a demarcação da Terra Indígena Tenondé Porã após a portaria declaratória da Terra Indígena Jaraguá. Fonte: CIMI

14 – 16 de setembro 2017: em protesto contra a anulação da demarcação da Terra Indígena Jaraguá pelo governo de Michel Temer, lideranças Guarani realizam uma série de protestos em São Paulo. No dia 30 de agosto, uma ampla mobilização toma a Avenida Paulista. Quinze dias depois, entre os dias 14 e 16 de setembro, ativistas Guarani ocupam o Pico do Jaraguá e desativam as torres transmissoras, cortando o sinal de telefonia e televisão para uma vasta região da cidade de São Paulo

Ocupação das antenas no Parque Estadual do Jaraguá. Fonte: Comissão Guarani Yvyrupa [CGY]

Janeiro-Março de 2020: ativistas Guarani ocupam o terreno onde seria construído o condomínio residencial “Reserva Jaraguá-Carinás”, situado próximo à aldeia Pyau. Executado pela construtora Tenda, o empreendimento levou à derrubada de cerca de quatro mil árvores em uma área da Reserva da Biosfera do Cinturão Verde de São Paulo. Chamada de Yary Ty, a ocupação dura até o mês de março, quando é removida pela Polícia Militar

Fachada da ocupação Yary Ty. Fonte: Alejandro Silva/CIMI regional sul

Junho de 2021: a volta da discussão sobre o Marco Temporal no Congresso Nacional desencadeia uma série de protestos de organizações indígenas. No dia 25 de junho, ativistas Guarani bloqueiam a Rodovia dos Bandeirantes. Cinco dias depois ocupam o Parque Estadual do Jaraguá e as antenas. Simultaneamente ocorrem manifestações na Avenida Paulista

Ocupação do Parque Estadual do Jaraguá e as antenas. Fonte: Rafael Vilela

03 de julho de 2021: no contexto da pandemia da COVID, ativistas Guarani participam da grande manifestação contra o governo do presidente Jair Bolsonaro, trazendo a pauta do Marco Temporal para a manifestação

Grande manifestação contra o governo do presidente Jair Bolsonaro. Fonte: G1/Globo

23 de junho de 2022: ocupação do Monumento às Bandeiras em protesto contra a tramitação da lei do Marco Temporal

Ocupação no Monumento às Bandeiras contra a tramitação da lei do Marco Temporal. Fonte: Rafael Vilela

09 de agosto de 2022: ato organizado pela Comissão Yvyrupa na Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, contra o Marco Temporal

Ato na Faculdade de Direito da USP. Fonte: Felipe Beltrame/G1

Maio-Junho de 2023: em protesto contra a aprovação da PL490/2007 pelos deputados em Brasília, ativistas Guarani novamente bloqueiam a Rodovia dos Bandeirantes. A manifestação é duramente reprimida pela Polícia Militar. Dias depois, em 04 de junho, a comunidade Guarani realiza a “Caminhada pela Vida” na área da T.I. Jaraguá

Bloqueio da Rodovia dos Bandeirantes contra a aprovação da PL490/2007. Fonte: Richard Wera Mirim

07 de junho de 2023: desafiando a repressão estatal, no dia 07 de junho ativistas Guarani realizam novo ato contra o Marco Temporal, desta vez na escadaria do Teatro Municipal no centro de São Paulo

Ato contra o Marco Temporal na escadaria do Teatro Municipal. Fonte: Julia Rez

Após a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva em 2023, e a criação do Ministério dos Povos Indígenas, retoma-se o processo de demarcação do território Guarani do Jaraguá em São Paulo. Através da Portaria 793 de 23 de Outubro de 2024, o Ministério da Justiça declara a nulidade da Portaria 683 de 2015, restabelecendo os efeitos da Portaria 581 de 2015 que reconhece a posse Guarani e a demarcação da Terra Indígena Jaraguá

Celebração da demarcação da T.I. Jaraguá pelas lentes de Richard Wera Mirim
Como a gente sempre faz nas manifestações com outras faixas, o mapa estava presente, primeiro na mão dos jovens e das crianças, depois as mulheres ergueram o mapa, e aquilo foi uma celebração, foi a nossa forma de fazer desse processo da demarcação da terra uma cerimônia. – Thiago Henrique Karai Djekupe
Conversa sobre o mapeamento na Tekoa Ytu com as lideranças Thiago Henrique Karai Djekupe e Felipe Silva
parte VIII:      

Patrimonialização do Colonialismo e Apagamento da Memória Indígena

Desde a criação do Parque Estadual em 1961, e principalmente no pós-ditadura militar, o Pico do Jaraguá e suas matas tornaram-se objeto de diversas iniciativas de patrimonialização pelo estado e pelo município de São Paulo. 

Esta parte do mapeamento identifica as áreas e bens que foram reconhecidos por órgãos governamentais como patrimônio e estão sob alguma lei de salvaguarda e proteção. 

Em sua maioria são sítios associados ao período colonial, particularmente ao período dos aldeamentos e da extração mineral no Jaraguá.

Tanque de lavagem de ouro da época colonial no Jaraguá (Fonte: Reprodução/TV Globo)

Apenas recentemente, em 2019, através do projeto “Memória Paulistana”, que dois lugares da memória Guarani entraram no inventário de lugares da memória da cidade de São Paulo: o lugar da casa da Cacica Jandira; e o ponto da Rodovia dos Bandeirantes onde ocorreram as manifestações históricas pela demarcação da TI Jaraguá.

Placa do projeto Memória Paulistana do Departamento do Patrimônio Histórico de São Paulo, reconhecendo a residência da cacica Jandira como lugar de memória dos Guarani e da cidade

PATRIMONIALIZAÇÃO DO JARAGUÁ

Em 1978, no contexto da construção do complexo turístico do Parque Estadual do Jaraguá, o conjunto Casa Grande-Senzala da propriedade do bandeirante Afonso Sardinha é tombado pelo CONDEPHAAT

Imagem do arquivo do levantamento técnico do complexo Casa Grande-Senzala de Afonso Sardinha presente na proposta de tombamento do Parque Estadual do Jaraguá pelo CONDEPHAAT, 1978.

Em 1983, toda a área do Parque é tombada pelo CONDEPHAAT, e em 1992 pelo CONPRESP.

Fotografias do bem tombado para a publicação Patrimônio Cultural Paulista, no tombamento do Parque Estadual do Jaraguá pelo CONDEPHAAT, 1978

Em 2019 o CONPRESP tomba as estruturas remanescentes da Pedreira de Quartzito no Jaraguá, nas proximidades da Tekoa Itakupé.

Muro remanescente de antiga Pedreira de Quartzito no Jaraguá. Fonte Tiago Queiroz/Estadão

Em 2019 o projeto “Memória Paulistana”, do Departamento de Patrimônio Histórico da Prefeitura de São Paulo, reconhece dois lugares de memória Guarani.

O lugar onde viveu a matriarca cacica Jandira, fundadora da Tekoa Ytu, a primeira retomada do Jaraguá; e o lugar onde foram realizados os protestos na Rodovia dos Bandeirantes.

Bloqueio da Rodovia dos Bandeirantes em 26/05/2021. Fonte Rafael Vilela

O que se observa na trajetória de patrimonialização do Jaraguá é a ênfase dada pelos órgãos de salvaguarda de São Paulo no reconhecimento apenas do patrimônio colonial, buscando enfatizar uma narrativa bandeirante da origem e da identidade da cidade, narrativa esta que apaga a presença indígena. 

Esse é o caso não apenas do patrimônio do Jaraguá mas de toda a cidade de São Paulo – Terra Indígena –, que através de monumentos como o Pateo do Colégio e o Monumento às Bandeiras constrói sua identidade sob o signo da conquista colonial. 

Um dos exemplos mais emblemáticos desta narrativa colonialista oficializada pelos órgãos patrimoniais paulistas encontra-se no projeto de tombamento do Parque Estadual do Jaraguá, elaborado pelo CONDEPHAAT em 1978.

O projeto original propunha a criação de um complexo turístico no Parque do Jaraguá celebrando a memória da conquista colonial sobre as terras Guarani, com a construção de uma estátua-monumento gigante do jesuíta José de Anchieta, fundador do aldeamento do Pateo do Collegio, no topo do Pico do Jaraguá.

Assim como no monumento do Cristo Redentor no Rio de Janeiro, o projeto incluía a instalação de uma linha de bonde para levar os turistas até a grande estátua-monumento.

Projeto da estátua-monumento do jesuíta José de Anchieta apresentado no Processo de tombamento do Parque Estadual do Jaraguá do CONDEPHAAT, 1978.
Imagem do arquivo do levantamento técnico do complexo Casa Grande-Senzala de Afonso Sardinha presente na proposta de tombamento do Parque Estadual do Jaraguá pelo CONDEPHAAT, 1978.
parte IX

Práticas Espaciais do Cuidado & da Reparação

Por toda Yvyrupa, as retomadas de terras ancestrais dos povos Guarani carregam um sentido de reparar o território e a natureza. Ao longo dos mais de 75 anos de retomadas em São Paulo, as comunidades da TI Jaraguá estabeleceram várias práticas de cuidado, proteção e manutenção da biodiversidade em seu território. 

Tekoas como Itawera, que recuperou uma grande área de lixão urbano, e Yvy Porã, com seu pioneiro projeto de recuperação de abelhas nativas, tornaram-se referência de restauração ambiental em tempos de urgência climática.

trecho da entrevista com a cacica Maria Ara Poty, fundadora da Tekoa Itawera

Em todos os núcleos habitacionais identificam-se práticas de recuperação e cuidado da mata, combatendo a poluição urbana da água e do solo, e promovendo o reflorestamento através do plantio de espécies nativas, o cultivo de roças tradicionais e jardins medicinais, e o monitoramento de animais silvestres. 

É a partir da contínua manutenção do _nhandereko, _o “modo de habitar” Guarani – saber ancestral transmitido pelos anciãos e anciãs – que tais práticas se constituem no tempo e no espaço através de gerações.

trecho da entrevista com Marcio Wera sobre o projeto de revitalização de abelhas nativas na Tekoa Yvy Porã
É um cuidado que todos os guarani têm. Se a gente não cuidar, acaba. Na destruição da mata, por exemplo, cada ser, cada árvore que a gente tem no meio da mata é um espírito indígena. Cada árvore antiga que cai, derruba e corta é um espírito indígena que tá indo embora ali Maria Ara Poty
O mestre dos saberes Natalício Karaí em frente ao jardim medicinal da Tekoa Pyau

Para espacializar e visualizar essas práticas do cuidado e da reparação da terra, foram realizadas uma série de oficinas de mapeamento participativo na TI Jaraguá. Sobre uma grande tela de tecido, um mapa foi desenhado por muitas mãos, guiado por lideranças, ativistas e professores guaranis, xeramõi e xejaryi (líderes espirituais), xondaros e xondarias kuery (jovens líderes, guardiões do território).

Cartografia participativa na TI Jaraguá

Traçando conhecimentos e vivências concretas no território, o mapa identifica áreas de fundamental importância para o habitar Guarani – como locais sagrados, caminhos tradicionais, áreas de proteção, áreas de reparação florestal e recuperação de espécies nativas –  que não estão registradas em bases de dados oficiais e, por isso, tendem a ser invisibilizadas pelas políticas públicas.

Diferente do que mostram os mapas de Estado, onde a TI Jaraguá aparece como um grande espaço verde e vazio, este mapa mostra uma terra densamente habitada através das práticas do nhandereko, o modo de habitar Guarani.  

Ao espacializar estes processos, o mapa joga luz em práticas muitas vezes invisibilizadas, principalmente o trabalho de cuidado cotidiano das mulheres que fincam raízes profundas para que Terra Indígena do Jaraguá cresça forte.

Práticas do Cuidado e da Reparação na TI Jaraguá
parte X

AMEAÇAS AO TERRITÓRIO E AO PATRIMÔNIO FLORESTAL GUARANI

O nhandereko – as práticas espaciais e culturais do habitar e do cultivo da terra das comunidades Guarani – está em constante ameaça pela urbanização predatória de São Paulo, que segue devorando territórios, matas e rios em suas margens. 

Enquanto a metrópole se expande, buscando os lucros do capital imobiliário, o território Guarani é cada vez mais cercado por infraestruturas urbanas, empreendimentos imobiliários e invasões. Mesmo demarcada, a TI segue sob crescente pressão espacial e política. 

Durante as oficinas de mapeamento participativo, além das práticas espaciais do cuidado e da reparação da terra, foram identificados vários pontos de ameaça à integridade do território e das florestas do Jaraguá

A urbanização predatória de São Paulo avança sobre as Terras Guarani do Jaraguá

Além da especulação imobiliária, ocorrências de violação de direitos territoriais da TI Jaraguá incluem desmatamento, fontes de águas obstruídas, caça illegal, expansão de plantações de eucalipto, poluição da água e do solo pelos bairros envoltórios, poluição sonora, queimadas ilegais, áreas com riscos de incêndio, entre outros.

Neste contexto, os mapas apresentados nesta plataforma digital buscam fornecer instrumentos de advocacia em apoio à luta dos Guarani pelos seus direitos territoriais e por reparações históricas e ambientais.

Trecho da entrevista com Daniel Wera, sobre as invasões de plantações de eucalipito na região da Tekoa Pindó Mirim
Mapa dos pontos e tipologias de ameaças indentificadas nas oficinas de mapeamento coletivo participativo

O mapa foi produzido pelo projeto Arquiteturas da Reparação: São Paulo Terra Indígena. Desenvolvido em parceria com lideranças e ativistas da T.I. Jaraguá, o projeto questiona visões tradicionais de cidade, território, memória, e patrimônio, buscando pensar como seres e elementos do mundo “mais-que-humano”, como as águas e as matas, podem ser incluídos como sujeitos patrimoniais dentro de um amplo processo de reparação histórica e socioambiental aos povos originários. O projeto foi realizado através de uma colaboração entre a T.I. Jaraguá, a agência autônoma, e o Chão Coletivo, por meio da plataforma Práticas Espaciais da Escola da Cidade. 

T.I. Jaraguá

pesquisadores: Antony Karaí Poty, Thiago Henrique Karai Djekupe, Felipe Silva, e Richard Wera Mirim

consultores e entrevistas: Jurandir Tupã Jekupe Mirim, Márcio Werã Mirim, Irene Mendonça (Jaxuka Mirim), Daniel Werã Mirim, Cacica Ara Poty (Maria), Natalício Karaí, Tamikuã Txihi…, Coletivo Arandu Mirim (Antony Karaí Poty, Ciara Martins, Samara Para Martins) 

participantes das oficinas: Antony Karaí Poty, Valdemir, Samara Para, Ciara Martins, Lenilson, Thiago Karaí Poty, Valdir, Felipe Silva, Osmar, Maria Ara Poty,  brigadistas Lucas, Paulino, Adriano, Vander, Danilo e Luciano, Natalício Karaí, Antônia, Lucas, Pedrinho, Txai Suruí, Miguel, Antônio, jovens e crianças. 

agência autônonoma

Paulo Tavares, Paula Marujo, Laura Pappalardo, Amanda Klajner e Julia Veras 

Chão Coletivo

Beatrice Perracini Padovan, Giulio Michelino, Glória Kok, Isabela de Castilho Moraes e Laura Pappalardo

Plataforma Práticas Espaciais

Carol Tonetti e Gilberto Mariotti

design gráfico: 

Cosmopolíticas Editoriais

finalização gráfica dos mapas: 

Carolina Passos

CAU/SP (Programa de Assistência Técnica para Preservação do Patrimônio Cultural 2024, Termo de Fomento 016/2024, Ref. Projeto 406165)

APOIO 

Design Museum, Future Observatory More-than-Human Fellowship

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