A polícia brasileira é conhecida globalmente por sua letalidade e as forças policiais do estado do Rio de Janeiro destacam-se no país pela mesma razão. Em 2018, foram 1.534 mortes em decorrência de intervenção de agentes do Estado. Em 2019, novos recordes: 1.814 mortes ao longo do ano - 5 pessoas por dia, em média. Destas vítimas, 78% eram jovens, pretos e pardos.
Neste contexto de acirramento da violência policial, houve uma intensificação do uso de helicópteros em operações policiais na cidade do Rio de Janeiro. Além de aumentarem o pânico durante as operações, os disparos feitos de helicópteros envolvem altos riscos para as pessoas moradoras destes territórios, que em geral são densamente povoados.
Nos anos de 2018 e 2019, identificamos 415 utilizações de aeronaves pelas forças policiais na cidade do Rio de Janeiro, a maior parte delas em favelas. Em 60 casos encontramos indícios de disparos a partir dos helicópteros. No mapa, é possível ver os locais com mais ocorrência. O círculo grande em destaque na direita cobre o Complexo da Maré, o local com mais disparos.
A Maré é a localidade com mais registros identificados de operações e disparos a partir de aeronaves. O Complexo da Maré reúne 16 comunidades e tem uma intensa vida social, com 139 mil residentes em um território de cerca de 5 km²
A Maré também tem uma localização estratégica na cidade. Além de estar às margens da Baía de Guanabara, ali encontram-se os principais troncos rodoviários da cidade. A região ainda está situada na rota preferencial de quem chega na cidade pelo aeroporto internacional e precisa se deslocar até o Centro, a zona sul ou zona oeste.
No total, a Maré abriga mais de 3 mil estabelecimentos comerciais e diversas outras instalações. No mapa, é possível ver uma parte das muitas escolas, organizações culturais, unidades de saúde, espaços de lazer, praças, quadras esportivas e igrejas. Todo este cotidiano é frequentemente atingido por violentas operações policiais. Uma das mais letais ocorreu no dia 20 de junho de 2018
Na manhã do dia 20 de junho de 2018, helicópteros realizaram disparos próximos a escolas e em ruas que costumam ser bastante movimentadas ao longo do dia. No mapa, veremos evidências coletadas pela Redes da Maré no dia da operação, na comunidade conhecida como Conjunto Salsa e Merengue.
Os pontos amarelos indicam a localização das escolas, enquanto o ponto vermelho representa a localização aproximada das fotos, onde é possível ver o impacto dos disparos no solo e a escola ao fundo. No dia, a equipe da Redes da Maré registrou dezenas de marcas de tiros no chão.


Próximo dali, a Redes da Maré também registrou os impactos das sequências de tiros no chão, trazendo evidências de que os disparos dos helicópteros ocorrem em forma de rajadas. Nas fotos e no vídeo abaixo, é possível ver a localização e proximidade destes disparos.




No vídeo a seguir veremos imagens da Maré a partir desta perspectiva. Reconstruímos parcialmente a trajetória do helicóptero, onde é possível ver indícios do seu movimento de cerco. O ponto no mapa mostra o local aproximado onde seis jovens foram executados pelas forças policiais terrestres no dia 20 de junho.
Entre as vítimas do dia 20 de junho, estava Marcus Vinicius, que usava uniforme escolar e mochila quando foi baleado. Depois de se abrigar dos tiros disparados a partir dos helicópteros, ele contou à equipe médica que o socorreu que foi alvejado por um carro blindado da Polícia Civil. O caso evidencia um modus operandi das forças de segurança pública baseado no extermínio. O uniforme escolar furado e manchado de sangue virou um símbolo dessa violência contra moradores de favelas e gerou diversas reações, mas até hoje a morte não foi esclarecida e sua família segue lutando por justiça.

Os disparos realizados a partir de helicópteros em horário escolar no dia 20 de junho não foram um caso isolado. De um total de 84 operações da Polícia Civil entre 2017 e 2019 com horário de início e término identificados, 49 delas (58%) ocorreram antes do meio-dia e 24 (29%) antes das 07h da manhã, coincidindo muitas vezes com o período em que estudantes estão indo ou voltando da escola. A arquitetura da favela inscreveu em seus telhados meios de se proteger dos tiros vindos do alto. Um sintoma claro de que esse tipo de violência se tornou rotina é a placa colocada no teto do Projeto Uerê, organização educacional da Maré, após ter sido atingida por balas vindas das aeronaves: "Escola. Não atire"

Com base nos dados coletados, identificamos 415 ocasiões nos quais os helicópteros da Polícia Civil ou Militar do Rio de Janeiro foram utilizados entre 2018 e 2019. O Complexo da Maré é o bairro com mais registros (35), seguido da Cidade de Deus (32).
O uso das aeronaves não acontece de forma homogênea. Ela concentra-se em alguns bairros da cidade. No mapa, vemos que os bairros com mais casos registrados estão situados nas zonas norte e oeste da cidade.
O uso de helicópteros está atrelado a um contexto mais amplo de conflitos e confrontos envolvendo disputa territorial entre policiais e grupos armados na cidade do Rio de Janeiro. Especializado na cobertura de conflitos desse tipo na cidade, o canal Pista News realizou um mapeamento dos territórios controlados por facções.
À esquerda do mapa, é possível ver o amplo poder territorial da milícia na zona oeste da cidade. À direita do mapa, onde encontra-se a zona sul, centro e zona norte do Rio de Janeiro, observa-se, por sua vez, diversos territórios controlados pelo Comando Vermelho (CV), hoje o principal rival das milícias na cidade. Sobrepondo o mapeamento realizado pelo Pista News e dados produzidos pelo Fogo Cruzado, foi possível perceber que os tiroteios com a presença de agentes de segurança (não necessariamente com uso de helicópteros) também possuem um padrão próprio. A seguir, veremos como os tiroteios ocasionados pela polícia concentram-se principalmente nas regiões controladas pelo Comando Vermelho.
A maioria dos tiroteios com presença de agentes oficiais acontecem em localidades dominadas pelo Comando Vermelho (CV). O tamanho dos círculos representam a quantidade de tiroteios com presença de agentes oficiais ao longo de 2018 e 2019, de acordo com o Fogo Cruzado. As áreas coloridas representam as regiões dominadas por facções, segundo o Pista News.
Em média, entre 2018 e 2019, foram identificadas 23 tiroteios com presença de agentes oficiais por quilômetro quadrado em áreas do CV. Em comparação, em áreas de milícia esta taxa foi de 0,5 por quilômetro quadrado. Ou seja, apesar da milícia ter um domínio territorial muito maior, os agentes oficiais entram em confronto principalmente em regiões comandadas pelo Comando Vermelho.
Veremos agora o caso da Cidade de Deus, o segundo bairro com mais registros de utilização de helicópteros durante operações, localizado na zona oeste da cidade.
Na Cidade de Deus, identificamos 32 casos de ações policiais com uso de helicópteros nos anos de 2018 e 2019, sendo que em 7 há indícios de seu uso como plataforma de tiro. No dia 20 de agosto de 2019, um helicóptero da polícia jogou uma bomba de efeito moral em uma área residencial, de acordo com denúncias e vídeos registrados por moradores em redes sociais e amplamente repercutidos na imprensa.